Foi com grande alegria que os profissionais da área de História receberam, no último dia dezoito de agosto, a notícia da aprovação da lei 14.038/20, que regulamenta a profissão de historiador. Trata-se de uma longa reivindicação que vem sendo discutida desde muitos anos e que, recentemente, tornou-se polêmica em virtude do veto presidencial ao projeto desta lei (PL 368/2009), de autoria do senador Paulo Paim. Após consulta pública, o Senado Federal aprovou este projeto de lei por unanimidade o qual, contudo, esbarrou no veto do Poder Executivo em abril deste ano. A justificativa foi a de que o projeto seria inconstitucional e feria o livre exercício da profissão.
Equivocadamente, setores da sociedade passaram a considerar a regulamentação da profissão uma tentativa de controle ideológico e cerceamento à liberdade de expressão, evocando o artigo 5º da Constituição Federal, inciso XIII, que garante o “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”. No entanto, o mesmo artigo é claro ao afirmar que o exercício da profissão é livre, desde que “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Longe de limitar a liberdade de expressão, regulamentar a profissão de historiador significa reconhecer que a produção do conhecimento histórico não pode ser obra de amadores ou aventureiros, sob o risco de se processarem graves dados à memória histórica. Fazer História (com H maiúsculo) significa dedicar-se ao estudo do passado com amparo científico, seguindo princípios longamente estabelecidos pela comunidade acadêmica e que dão validade às análises resultantes dos processos de investigação. Sendo assim, o trabalho do historiador é orientado por regras e princípios que o tornam algo diverso de simples opiniões ou de um mero acúmulo de informações. O historiador, como qualquer cientista, formula hipóteses, ampara-se em evidências (as chamadas fontes históricas) e usa métodos específicos de análise e tratamento de fontes cujo intuito é afastá-lo do perigo de distorções históricas ou de produzir análises meramente especulativas. Partindo do cruzamento de evidências, da investigação dos limites e valores de suas fontes e de um incessante trabalho de crítica e leitura, o historiador refuta ou comprova suas hipóteses para, então, redigir os resultados de pesquisa. Estes, para que sejam validados, precisam passar pela aprovação da comunidade científica, em bancas de mestrado, doutorado e pareceristas de revistas indexadas. É um trabalho longo e exaustivo demais para ser resumido a meras opiniões.
Em termos práticos, a lei significa o reconhecimento social e profissional dos historiadores e afeta todos os níveis, incluindo a Educação Básica. O artigo 4º da Lei 14038/20 prevê como uma das atribuições dos historiadores o exercício do “magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio”, assegurando o exercício deste ofício àqueles portadores de um diploma de curso superior, mestrado ou doutorado em História, desde que cumprida a exigência de licenciatura prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Ainda de acordo com o mesmo artigo, entidades que prestam serviços em História precisarão manter, “em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados”, abrindo possibilidades de contratação para os profissionais do campo.
Por estes motivos, a regulamentação da profissão do historiador é uma vitória histórica. Em uma era de disseminação de negacionismos históricos disfarçados de revisionismo e verdades absolutas, é um alívio saber que o exercício da atividade está assegurado, a partir de agora, aos profissionais dotados das competências e habilidades técnicas que o ofício exige. A regulamentação do trabalho do historiador era uma necessidade urgente não apenas para a produção acadêmica e intelectual, mas fundamental para contribuir com a melhora da qualidade da educação ofertada em nosso país. A contratação de profissionais sem habilitação específica na área para ministrar conteúdos de História pode minar de forma permanente nossa relação com o passado, impedindo que possamos agir de forma mais consciente sobre nossa realidade presente e perspectivar o futuro de forma construtiva.
Nota da redação: Maria Thereza David João é doutora em História Social e professora da área de Linguagens e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter.
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