Vi, estarrecido, pela mídia, um magote de vândalos, uma súcia de desordeiros autointitulada “Revolução Periférica”, desembarcar de um caminhão no início da tarde do último sábado, 24 de julho, na Avenida Santo Amaro, em São Paulo – Capital, espalhar pneus pela via pública e, nos arredores do monumento do bandeirante Borba Gato, atear fogo à estátua, que, felizmente, não chegou a ser derribada (empreguei, propositadamente, “derribar”, forma arcaica, quase em desuso, do verbo “derrubar”, só para combinar com a época do bandeirante).
Independentemente de quem foi o bandeirante Borba Gato e o que ele fez, trata-se de um patrimônio público, um equipamento edificado e custeado pelo Poder Público, que representa (o Poder Público, não a estátua) a coletividade, ou seja, todos os cidadãos. Exatamente por isso, considero o gesto de queimar a estátua de Borba Gato um atentado terrorista, uma barbárie.
“Ah, mas foi um desalmado!” – dirão uns. “Ele caçou, escravizou e matou índios e negros” – dirão outros. Ora, é óbvio que Manuel de Borba Gato, bandeirante paulista, descobridor de ouro e participante da Guerra dos Emboabas, não foi nenhum santinho! Ele era genro do bandeirante Fernão Dias Pais, outro que também não era anjo e não descera das alturas celestiais! Contudo, em que pesem seus erros, sua conduta e eventuais crimes – e assinalo que não o estou defendendo, nem o isentando de nada! –, trata-se de um personagem histórico de um dos períodos mais importantes da História do Brasil, afinal as “Entradas e Bandeiras” definiram os contornos do Brasil atual. E, se Borba Gato caçou, escravizou e matou índios e negros no século XVII, não será agora, em pleno século XXI, através de um horrendo ato de vandalismo, que a reparação histórica virá, ainda mais através de um gesto de vandalismo rasteiro protagonizado por um grupelho de zotes, filhos do radicalismo e da ignorância.
Por que vandalismo? Porque não vejo diferença entre aqueles que queimam uma estátua de quem quer que seja e aqueles que quebraram uma placa de rua com o nome da vereadora Marielle Franco. São extremistas e intolerantes que se nivelam ao chulo das calçadas e merecem entrar para o lixo da História!
Em setembro de 2020, vândalos quebraram as pernas de uma estátua de Ariano Suassuna, que foi um artista sublime, no Centro de Recife, em Pernambuco. Ignorantes que resolveram entrar na “modinha” de vandalizar estátuas que, por certo, ignoravam quem foi o grande Suassuna, desconhecendo ainda mais o seu legado.
Essa onda do “politicamente correto” tem gerado um revisionismo estúpido que pretende misturar, no mesmo caldeirão, personalidades de diferentes épocas e analisá-las com o olhar de agora, com os valores atuais, dissociando-as de seu contexto histórico e de sua época, o que, por óbvio, não é possível. Seria o mesmo que se analisar e se julgar a conduta dos césares ou dos faraós à luz dos códigos contemporâneos, dos valores atuais, das leis de agora.
Outro absurdo nascido dessa onda revisionista é a pretensa “revisão” ou “atualização” de um centenário cânone da literatura infantojuvenil, o livro “A Menina do Narizinho Arrebitado”, que introduz o universo do “Sítio do Picapau Amarelo”, com exclusões e alterações de trechos inteiros – absurdo esse promovido (pasme!) pela própria bisneta do autor, Cleo Monteiro Lobato, com o escopo de apagar o “racismo” contido nas obras de Lobato. Historicamente, isso muda o quê? Não se deve rotular Monteiro Lobato de racista, pois sua obra reflete a realidade da época do escritor, que era filho e neto de fazendeiros e presenciou de perto o drama da escravidão. Isso é uma coisa. Outra coisa é o repúdio a toda e qualquer forma de racismo e intolerância, pois, afinal, todas as vidas importam.
Ademais, quem adultera livros é bem capaz de queimá-los em praça pública! Mas isso já é outro assunto…
Voltando ao foco principal, que é o vandalismo praticado a derredor da estátua de Borba Gato, é preciso que os homens de bem, que, felizmente, são a maioria, desestimulem e repudiem veementemente quaisquer atos de desordem e de violência social.
Nota da redação: Marcelo Henrique, poeta, escritor e jornalista
Twittar | Compartilhar |