Por: A Tribuna
02/03/2020
10:03

No dia 22 de setembro de 1945, o jornal Globo noticiava, numa pequena nota, a volta ao Brasil de uma moça “ruiva, formosa”, vaiada ao embarcar no mesmo navio que muitos pracinhas que regressavam após lutar na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Essa jovem era Margarida Hirschmann, tratada como a “Rosa de Tóquio” brasileira por ter participado de transmissões antialiados destinadas às tropas verde e amarelas na campanha, na Itália. A comparação se referia a Iva Toguri, americana de origem japonesa que, também pelo rádio, passava mensagens aos soldados dos Estados Unidos conclamando-os a desistir da guerra no Japão.

Margarida e outro brasileiro, Emílio Baldino, trabalhavam para a Rádio Fina-Mônaco, instalada perto de Como, na Itália, onde faziam o “Programa Auri-Verde”. Os locutores foram acusados de desmoralizar o governo e as autoridades do Brasil, abalar o moral da tropa e incitar os praças à deserção, tudo sob as ordens de oficiais nazistas. A pena prevista era fuzilamento ou 30 anos de reclusão.

No primeiro julgamento, em julho de 1946, Margarida e Emílio foram absolvidos. Mas o Superior Tribunal Militar (STM) reviu a decisão e condenou a dupla a 20 anos de prisão. Margarida foi presa e Emílio conseguiu fugir. Em 1949, a Justiça reduziu a pena da locutora para apenas três anos e ela acabaria sendo indultada. O locutor nunca foi preso.

Rádio alemã para brasileiros

Militares alemães montaram uma rádio em solo italiano para tentar desmoralizar o pessoal da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Chamava-se “Rádio Auriverde”, funcionava na Rádio Fino-Mônaco, instalada perto de Como e tinha como comandantes Anelmann Alta e Kreuzer, além do italiano Felício Mastrangelo, que fora radialista no Brasil entre a década de 30 até 1942. Todos tinham morado no Brasil e sabiam como usar o rádio como arma psicológica.

Ao grupo, se juntou Emilio Balduino, que era estudante na Alemanha, desde 1938. Já Margarida Hirschmann era taquígrafa de português na revista Signal e na Rádio Berlim. No auge da rádio, um Pracinha feito prisioneiro foi levado à força, para cuidar da parte musical. Era o soldado da FEB, Antônio Ribeiro da Silva (6º Regimento de Infantaria). Antes dele, um outro brasileiro residente na Alemanha, Carlos Pinto, havia sido assassinado por não querer a função.

Nenhum soldado se rendeu por causa dos programas dela, que tocavam músicas do Brasil e entre uma música e outra soltavam algum desaforo ou pedido para que os Pracinhas se entregassem. O pessoal que ouvia, ouvia por causa das músicas e nem ligava com as bobeiras proferidas.

Quem era Margarida?

Paulistana, filha de imigrantes alemães (José e Maria Hirschmann), havia embarcado para a Alemanha em 1939 e moravam em Munique quando a guerra começou. O pai estava doente e ela e a mãe cuidavam dele. “A princípio, os alemães não me obrigaram a trabalhar. Eu, para manter-me, servia na Casa de Arte, porém, depois, com a marcha da guerra desfavorável, todos os homens válidos foram sendo gradativamente substituídos e ordenaram-me a entrar para o Serviço de Trabalho Obrigatório. Dali fui enviada, sob pena de fuzilamento, para a cidade italiana de Fino Mônaco, no Lago di Como, e ainda sob ameaça disseram-me que atuasse como locutora e datilógrafa no Programa Auriverde, feito para os brasileiros”, explicou ela, em 1945, para a Revista Cruzeiro.

Com a palavra a acusada

“Durante os meses em que estive nessa emissora, faltou-me talvez a coragem necessária para trocar o microfone pelo pelotão de fuzilamento. Desejo saber: quantas mulheres preferiam a morte? Várias vezes tive conflito com o pessoal alemão e de tudo isso tenho provas documentadas. Agora, surge um soldado brasileiro, capturado pelos alemães, e que trabalhou sob coação ao meu lado; esse soldado faz parte da acusação. Pergunto eu: se ele, homem e soldado. não encontrou meios de resistir, que poderia fazer eu, uma mulher sozinha? Confesso que tive medo. Podem até me acusar de covardia, mas não de traição. Em todos os anos em que permaneci na Alemanha ou na Itália, não deixei de ser forçada a realizar tarefas que sinceramente não desejava executar”, explicou na mesma reportagem para a Revista Cruzeiro.

Quando a guerra acabou, Margarida não foi presa de imediato, fugiu para Milão e lá encontrou os brasileiros. “Residi nesse tempo num edifício de apartamentos situado no Largo do Rio de Janeiro nº 2″. Ali, foi pega pela FEB e levada para o comando americano a quem passou informações de bom grado. “Todos nós, entretanto, procurávamos ser úteis aos aliados, menos esse tal Felício Mastrangelo, italiano,
e que não poderá ser julgado no Brasil porque não nasceu aqui. Mastrangelo vive em liberdade na Itália e é feliz. Ele era o chefe e o mentor dos programas. Nós obedecíamos, apenas. Milhões de pessoas estão nas mesmas condições e foram perdoadas, porque não estava em suas mãos reagir contra a violenta perseguição dos nazistas”, completou. 

Ajudando os aliados, diziam documentos

Já em poder dos americanos, a acusada foi falando o que sabia e conseguiu um documento para apresentar em sua defesa: “Quartel General do IV Corpo – Seção G2 (Serviço de Informações), 15 de junho de 1945. O Tenente Chiaparelli (Do Exército dos Estados Unidos) abaixo assinado, em funções junto à Seção G-2 do 4º Corpo, declara que a senhorita Margarida Hirschman prestou, ao lhe serem pedidas informações úteis, despendeu atividade a favor dos inquéritos feitos pela referida seção. O seu auxílio foi prestado com lealdade e amizade para com as Nações Unidas. (a) Frederico Chiaparelli, 2° Tenente 1. A. Firma reconhecida pelo Consulado de Portugal, encarregado dos negócios do Brasil na Itália”, revelou a Revista Cruzeiro.

Não adiantou. Margarida foi mandada escoltada junto com um dos contingentes da FEB e sob o cuidado de enfermeiras que também voltavam para casa. Foi recolhida à prisão na Capital, na época,  Rio de Janeiro. Foi processada por espionagem e por levantar armas contra o Brasil em guerra, o que poderia lhe render pena de morte por fuzilamento ou 30 anos de prisão.

Liberdade provisória em 1946

Em 18 de julho de 1946, na edição 64, o Jornal A Manhã, com um texto satírico, tentou uma entrevista e Margarida ameaçou que quebraria tudo na Redação caso escrevessem alguma coisa contrária à sua vontade. “Deve ser protegida de gente importante e se sente com autoridade de ameaçar”, diz o texto.

Margarida estava no aeroporto quando foi abordada pelo jornalista e se trajava de verde, a “cor do Integralismo”, ressalta o jornal. Ela estava de pescoço espichado tentando ler a carta de outra pessoa ao lado quando falaram com ela, que tentou explicar a situação e o jornalista a tranqüilizou que não havia problema. Foi direto ao assunto:

-Está satisfeita com a sua absolvição?

-É claro que estou contente em me achar em liberdade, mas isto não significa que eu estivesse muito triste na prisão, onde era tratada à vela de libra. Aliás, a prisão para os fascistas de alto coturno é uma espécie de retiro especial, onde gozam de todas as regalias. A cama é dura para os trabalhadores que querem fazer guerra ou que reclamam de salários. Esses, sim, são os que comem da banda podre – teria dito a ex-radialista nazista.

-E vai contente para São Paulo? – retrucou o jornalista.

-Não muito, mas não é por nada. É só por uma bobagem, uma superstição. Eu não gosto de viajar em dia de segunda-feira. – teria respondido Margarida.

-Por quê? – voltou a questionar o repórter.

-Sou mais da quin…

Nesse momento a conversa foi interrompida pelo alto-falante e a mulher foi embarcando.

-Adeus, pátria e família – teria dito. Era uma alusão aos valores integralistas: Deus, Pátria e Família.

E antes de entrar completou:

-Eu sou integralista até no nome. Não se esqueça que sou Hirsch-mann. Sabe o que é Hirsch [cervo em alemão].

E se foi. Qual a relação que queria fazer, não deu para entender.

Se o jornal queria apenas fazer graça ou se ele realmente disse essas palavras, não dá para saber. Ela não apareceu na Redação para cumprir a promessa de quebrar tudo.

Como ela foi liberada?

Primeiro ela foi julgada pela Justiça Militar e absolvida. Depois, com apelação da Promotoria ao Supremo Tribunal Militar, a pena foi revista e colocada como pena mínima (20 anos). Nisso, Guaracy Silveira, deputado federal, a defendeu publicamente no Jornal Cruzeiro, com o apoio de outros 95 colegas, entre eles o general Flores da Cunha, político famoso da época. Segundo os parlamentares, outros acusados de espionagem estavam livres e só ela, por ser mulher, continuava na prisão. Quem a defendia era o advogado Evandro Lins e Silva (que já defendera e tinha libertado outros acusados de colaboracionismo e espionagem para os nazistas durante a guerra). O procurador público era Paulo Whitaker. Os 20 anos viraram três e depois foram zerados.

O jornal catarinense, O Lageano, de 2 de julho de 1949, ao noticiar o indulto total e a liberação de Margarida Hirschmann, lembrou que o vice-presidente Nereu Ramos foi o responsável por assinar os documentos para liberação da ex-locutora, porém defendia que ele o fez como qualquer outro processo, sem favorecimentos. Dali em diante, a pena foi extinta e esquecida. Nereu intercedeu e por pressão dos fatos e da política, colocou Margarida em liberdade definitiva. Depois disso, somem as menções à ex-radialista.

De fato, cinco anos depois da declaração de Margarida, já em 1950, a Revista do Rádio, número 24, de fevereiro, confirmava que Felício Mastrangelo estava solto e trabalhando como gerente de rádios na Itália. Emilio Balduino foi libertado da mesma maneira que Margarida e também tratou de sumir.


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